sexta-feira, 14 de agosto de 2009

o fabuloso Ricardo




Um Falstaff íntegro (e magro)

A morte é certa, mas a morte de um grande humorista é a mais certa de todas. Um grande humorista percebe a morte melhor do que os outros ­ e é por isso, aliás, que dedica a vida inteira a escarnecê-la. O riso é o grande fracasso da repressão, disse alguém que hoje mereceria mais do que o anonimato ­ e é a grande vitória (a única possível) da vida.
Raul Solnado dizia muitas vezes que fazer rir, ou é fácil ou é impossível. A frase é, parece-me, de Woody Allen, e é fulgurantemente verdadeira. Haverá poucas coisas menos engraçadas do que alguém que se esforça para ter graça.

A atitude humorística de Raul Solnado assentava exactamente nessa ausência de esforço. Antes de abrir a boca, Solnado já tinha graça: é divertido que alguém que ama tão profundamente o riso decida simular a maior displicência perante ele. O intérprete Solnado não só está completamente desinteressado da tarefa de fazer rir os outros como parece nem perceber de que é que eles se riem. Não é só um palhaço que não quer fazer palhaçadas, é um palhaço que está relutante em admitir que é um palhaço. De facto, o que surpreende em Raul Solnado não é que um humorista vindo do teatro de revista pudesse ter êxito a fazer um tipo sofisticado de humor absurdo ­ o que é notável é que um humorista cujo estilo era contido e preciso tenha alguma vez tido sucesso no teatro de revista. O cómico cujo estilo estava mais distante do gosto popular foi aquele que obteve um sucesso mais abrangente, o que é espantoso.
A revista teve muitos outros grandes actores, mas nenhum terá sido capaz da mesma versatilidade. Ivone Silva, por exemplo, era uma actriz de revista brilhante. Mas ninguém consegue imaginar Ivone Silva a interpretar o texto da guerra. É, aliás, significativo que Solnado tivesse adoptado como divisa uma ideia de Woody Allen. Allen e Solnado são, na verdade, humoristas aparentados de mais do que uma maneira. A gaguez e a aparência física constituem, em ambos, instrumentos da sedução (da sedução humorística e da outra), e os monólogos de Solnado são o equivalente português das histórias que compõem os números de stand-up comedy de Woody Allen.

Solnado era uma criança sensata, como Falstaff, o herói cómico de Shakespeare, mas sem os seus pavorosos defeitos ­ o que, humoristicamente, era uma desvantagem para Solnado. É muito mais difícil ter graça quando os defeitos não estão à vista e as qualidades são tão evidentes. A ternura não tem piada. A generosidade também não.
E, no entanto, Solnado era terno e generoso. Há várias comédias famosas sobre avarentos, misantropos e hipocondríacos, mas não muitas sobre o tipo de pessoa que se percebia que Solnado era. Conseguir ser humorista apesar daquelas virtudes é mais do que problemático: é quase uma falta de ética.

Philip Larkin escreveu que a coragem não isenta ninguém da sepultura: a morte não é diferente para os que a temem ou para os que a enfrentam. Certo. Mas a vida é. A vida é mais vida para quem se ri da morte do que para quem a teme. Raul Solnado viveu bem. E, por causa dele, todos vivemos melhor.

9:33 Quinta-feira, 13 de Ago de 2009

tirado com todo o gosto da Visão