Porque desde a Monarquia que foram deportados e até classificados como brancos de segunda, a comunidade de origem Europeia em Angola e noutras então "Províncias Ultramarinas", constituíu um pulmão de alguma liberdade relativamente ao regime da "Metrópole", até para algumas entidades governativas e militares locais. Não foi por acaso, que uma grande parte dos chefes militares que organizaram a revolução de 25 de Abril de 1974, eram provenientes do "Ultramar"...
Mas não só ao nível dos poderes se fazia sentir esta relativa liberdade, em muito ajudada pela imensidão de terrenos paradisíacos, quentes, ricos e férteis. Em Angola, criava-se e produzia-se com modernidade e prosperidade e respirava-se um sentimento de autonomia.
Dezenas ou até centenas de milhares de pessoas foram para Angola para se afastarem do sufoco inquisitório do poder, que lhes tolhia as suas profissões e suas vidas.
Foi o caso dos Arquitectos que deram forma a cidades, arruamentos e estátuas por toda a Angola, conferindo aquele carácter de modernidade que espantava quem lá ia pela primeira vez, tal como ainda hoje acontece, apesar da degradação e adulteração presente.
A forma trapalhona e até criminosa como foi tratado o processo de independência, arruinou todo um sonho de construção de um país.
Sobre o exemplo da Arquitectura e Urbanismo, segue-se um artigo do jornal Expresso:
Arquitectura Geração africana | ||||
Uma geração de arquitectos portugueses deixou uma vasta obra em Angola e Moçambique. Realizada no terceiro quartel do século, esta foi uma produção de vanguarda extremamente inovadora e realizada no espaço colonial africano que importa agora salvaguardar
Alguns já ali viviam, inseridos no meio colonial, e vieram à Metrópole de então completar os seus estudos. Foi o caso de Vasco Vieira da Costa (1911-1982), natural de Aveiro, que estudou-trabalhou com Le Corbusier e tem uma obra notável em Luanda, desde o inovador mercado Quinaxixe (de 1950-52, quando muitas obras homólogas do Portugal ibérico eram tradicionalistas e revivalistas), ao bloco da Mutamba (dois grandiosos prismas ao alto, de 68-69, hoje o Ministério do Urbanismo e Obras Públicas). Mas outros, então recém-formados, foram para África «para se libertarem», para seguirem a sua vida profissional de um modo mais aberto e moderno, coisa aparentemente simples e normal, mas que sentiam lhes era de algum modo negada ou dificultada na pátria europeia.
Foi também o caso de Castro Rodrigues (1920), o assinalável «arquitecto do Lobito», que com generosidade e talento ofereceu a sua vida profissional à que se tornou na época a segunda cidade angolana. Apesar de vigiado pela PIDE, Rodrigues conseguiu fixar-se no Lobito em 53 e lá realizou uma verdadeira «obra global», enquanto discreto mas activo funcionário municipal. Foi planeador, urbanista e arquitecto, realizando para a novas áreas de expansão urbana muitos dos melhores equipamentos (entre 64-66), em desenho caracteristicamente leve e moderno, como o liceu, o mercado, o aeroporto, o elegante cine-esplanada Flamingo. Rodrigues teve um percurso excepcional em Angola, pois «ficou», por adesão e gosto, depois das independências, contribuindo para a organização do curso de arquitectura da jovem RPA, até 87. Convidado pelo município do Lobito para as comemorações da cidade, ali voltou em 93, honrado e comovido. Já o arquitecto natural de Luanda Fernão Simões de Carvalho, que também tirocinou no atelier de Le Corbusier, é uma figura de actividade mais diversificada, com obras em Luanda, mas também em Lisboa e no Brasil. Entre 63 e 65, foi autor, com Pinto da Cunha, do hospital do Lubango (ex-Sá da Bandeira); e, também com Fernando Alfredo Pereira, do Bairro Prenda luandense. Teve uma intervenção persistente, formativa e continuada no planeamento municipal de Luanda.
Em Angola, refiram-se ainda nomes como o de António Campino, com o Hotel Presidente ou a Auto Avenida, em Luanda; o dos irmãos Garcia de Castilho, pioneiros da década de 50, que edificaram em Luanda o grandioso Cinema Restauração ou o edifício Mobil (1951); o de Fernando Batalha (1908), que trabalhou para os Monumentos Nacionais de Angola; o de Pereira da Costa (com o Prédio Cirilo, do «ciclo do café», de 59); o de Luís Taquelim (nascido no Algarve, ao que parece autor do Hotel do Moxico/Vila Luso). E sem esquecer passagens mais fugazes, mas assinaladas por uma acção inconformista, como a de Francisco Silva Dias (1930), que lhe valeu a demissão da Câmara de Luanda (atreveu-se a defender publicamente que o planeamento fosse liderado por arquitectos municipais!) - mesmo assim autor do projecto da escola técnica de Saurimo, na longínqua Lunda, de 59 (obra que há dias descobriu, surpreso, ter sido edificada); ou a de Nuno Teotónio Pereira e Bartolomeu Costa Cabral, autores de uma pequena «minicidade industrial» moderna para a Empresa da Celulose (Alto Catumbela, Benguela - 58-59).
Tinoco (1983), autor de notáveis obras modernas adaptadas ao contexto climático (aerogare de Nampula; sede do Governo do Niassa, em Lichinga, - 66-68); José Porto (1963), autor do portentoso Grande Hotel da Beira e de vários edifícios no centro da cidade, dos anos 40-50; Francisco de Castro (projectista da estação ferroviária da Beira); ou ainda Garizo do Carmo (cinema S. Jorge, Beira). E sem esquecer, de novo, os autores com passagem pontual pelo território, como José Gomes Bastos (1914-1991), autor do esplêndido e superdecorado BNU de Lourenço Marques (hoje o Banco de Moçambique no Maputo). O que impressiona, no conjunto destas obras, é a dimensão inovadora e moderna, sem pudores, receios ou hesitações, embora criada em plena situação colonial, e em muitos casos «superprovinciana». O que se admira e estima é a grandeza de vistas, culturais, técnicas e artísticas de uma geração de «migrantes profissionais», que, trabalhando muitas vezes em contextos da administração oficial, pôde lançar «novas cidades», plenas de novíssima arquitectura moderna, pelas várias e vastas regiões dos territórios então luso-africanos. Sobretudo entre 1950 e 1975. Porque há que o dizer, um quarto de século depois da gesta terminada, com alguma objectividade, esta arquitectura e este urbanismo atingiram qualidade e dimensão superior à praticada na mesma época na «Metrópole». E só uma situação de confiança plena na inovação, de entusiasmo colectivo, de consonância apesar das diferenças (entre Estado, promotores privados, acção municipal) e de entendimento e aceitação de uma nova escala geográfica, económica e social (com alguma ingenuidade e gosto pela descoberta, que é benéfica nestes casos) podem explicar este facto. Por contraste com uma sociedade metropolitana, que resistiu à modernização, na «África Portuguesa» do terceiro quartel do século foi possível experimentar e mesmo alimentar e instaurar a novidade e a modernidade dos espaços e das arquitecturas, num período de 25 anos, aliás único do contexto europeu, dado que os países europeus (democráticos no pós-II Guerra Mundial) tinham na quase totalidade abandonado já os territórios africanos coloniais até 60-61. Neste período, ironicamente, Portugal foi assim o «caso único» de uma nação com regime político retrógrado a nível europeu que teve uma produção de vanguarda inovadora no seu espaço colonial africano. Agora, olhando o futuro possível deste enorme legado material, entre cidades e edifícios, há que o saber inserir (o que sobra, e é recuperável) no contexto novo da reconstrução pós-guerras civis, nas novas nações da Guiné-Bissau, de Moçambique, e esperemos que em breve, de Angola. Conhecendo o valor do que existe, melhor o poderão recuperar, reutilizar e integrar. Texto de JOSÉ MANUEL FERNANDES Última actualização em 8/1/100 às 04:51:37. Copyright 2000 Sojornal. Todos os direitos reservados. |