sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Como é Lisboa, Artur?

Já disse que gosto muito, muitíssimo, de estórias bem contadas?

"Viriato 25", é um programa de rádio que fez há dias 1 ano. Da autoria de António Sérgio para a Radar, tem uma rubrica denominada "tira linhas", com narrações gravadas de Ana Cristina Ferrão.

Hoje, terminou aí pela 4ª vez (e não me canso) a narração de "A História do Hidroavião", de António Lobo Antunes. Encantadora:

"Era uma vez um homem sentado diante de casa, a olhar para o rio. Casa é maneira de falar porque não se pode chamar casa a uma barraca de tábuas costuradas com arame e reforçadas de placas de cartão, com um pedaço de zinco a servir de telhado. Mas nessa parte da cidade, em Cabo Ruivo, ao pé dos fumos da Siderurgia, quem tinha chegado de África, como o homem, sem mais roupa que a do corpo e sem mais bagagem que um baralho de cartas, era dessa forma que se governava. O Boeing de Angola desembarcava em Lisboa as pessoas fugidas à guerra, e no dia seguinte lá andavam elas, truca truca, truca truca, a martelar cabanas num baldio de ervas frente aos vapores do Tejo, entre armazéns ao abandono e um hidroavião que era um esqueleto de morcego, com a pele de lona a desfazer-se debaixo da surpresa das gaivotas.

Barracas assim contavam-se para cima de três dúzias, umas mais perto outras mais longe da água, feitas com os desperdícios de uma obra (tijolos, pranchas, areia, ruínas de andaime) que não se completara sabe Deus porquê ...

... havia crianças mulatas a brincarem com bocaditos de canas, havia a cidade que parecia um grande pulmão de chaminés e janelas a respirar nas costas do homem, e havia sobretudo o rio, que para aquelas bandas, a bem dizer, nem rio era: um pântano cinzento, horizontal até aos morros de Alcochete, ou do que, para viajantes de Angola, se calculava que fosse Alcochete, a brilhar, à noite, lantejoulas de leque sevilhano.

Ao homem sentado diante de casa tanto se lhe dava que se tratasse de Alcochete, Nova Iorque ou Paris: tinha um rectângulo de cortiça nos joelhos, para a paciência das cartas, e ao levantar os olhos do baralho, com a cabeça ainda em Luanda, não era o Tejo que via: era uma ilha de palmeiras, uma concha de arcadas com aves pernaltas nas empenas, e fragatas a gasóleo largando para a pesca, num rastro de motores e batucada.

O homem morou quarenta e sete anos em África, a trabalhar de motorista de camião ao serviço dos holandeses dos diamantes e custava-lhe habituar-se a uma terra de frio onde ninguém o conhecia, tirando os vizinhos de desgraça que dividiam com ele uma língua de lama e alforrecas, furtada aos desenfados do rio.
...
De forma que estava o homem diante de casa, às voltas com ases e manilhas, e sentado ao lado dele, num balde ao contrário, um cego de óculos de mica. Muito direito, atento com os ouvidos que é como os cegos vêem, a enrolar uma mortalha com deditos de croché, e mal os sons rareavam, sinal de que o homem hesitava a pensar, o cego perguntava logo, inquieto:

— Como é Lisboa, Artur?

E, ao fim de um silêncio comprido, o homem, a desfazer a paciência com a mão aberta e a olhar para Alcochete:

— Lisboa?

Guardava as cartas de má morte no bolso, e ficava-se, de pálpebra rancorosa, no hidroavião, à medida que pelas redondezas começava uma agitação de ralhos e de caldos em púcaros de folha, que era o jantar de quem viera de Angola, sem dinheiro para uma quarta de chouriço. O homem não comia: demorava-se crepúsculo adentro até o hodroavião desaparecer nas luzinhas de Alcochete ou de Paris, que para os nascidos em África, como era o caso, era igual ao litro, e o cego ao lado dele, também sem caldo, impassível nos óculos de mica, a puxar fósforos e a acender o cigarro na colher da mão. Já estava tudo escuro, só candeeiros a tremelicarem ao longe e um ventinho nas ervas, e o homem, de gola levantada por causa das traições da bronquite, a pensar que ele e o baralho se achavam em Portugal há três semanas no mínimo ... e nisto o cego, curioso, a chupar o cigarro, numa voz que se confundia com os grilos:

— Como é Lisboa, Artur?
...
De ideias fixas o cego, pensou o homem cuja cabeça continuava no canto oposto do mar, agarrada ao musseque onde crescera, entretendo-se sozinho no quintal das traseiras, sob um braço de tília. De certo modo, embora estivesse em Cabo Ruivo permanecia em África, com a mãe e as irmãs mais velhas ... e, por estranho que parecesse, o que recordava melhor não eram coisas de adulto, já homem, já motorista dos holandeses dos diamantes, a conduzir um camião para cá e para lá, de Malanje a Luanda e de Luanda a Malanje. ...

Fixava-se no hidroavião a olhar as asas tombadas, os flutuadores, que pareciam pantufas gigantescas de caminhar sobre as marés do Tejo, as cadeiras sem passageiros, a hélice de moinho de poço, o lugar do piloto encostado ao volante, parecido com o dos camiões dos diamantes: só não havia a mascote da pretinha de tanga, pendurada de uma guita, a dar-a-dar no espelho. Isso, pensou o homem, não constituía problema: a questão era uma pessoa instalar-se ao guiador, que em chegando a Luanda encontraria, apesar da guerra que por lá faíscava, a destruir vivendas e jardins, uma capelista pronta a vender uma mascote nova, de modo que alcançaria Malanje com a boneca, toda contente, a dançar merengues no vidro. Quanto a colegas de viagem, que de Lisboa a Malanje é um esticão, convidava o cego que, como ele, não tinha caldo nem família, e de caminho dava uma volta sobre Cabo Ruivo e explicava-lhe a cidade: monumentos, estátuas, igrejas, o carrossel do oito, bairros de ricos, tudo. Largariam de manhã cedo, à hora a que os albatrozes se levantam das mimosas do lodo e o nevoeiro se esfuma em Alcochete, Nova Iorque ou Paris, mostrando paus de fio e telhados tremendo à flor da água, e o indiano do automóvel das Américas, incrédulo:

— Esse hidroavião não vale nada, coitado.

E realmente não parecia valer nada: em três semanas que o homem ali estava, sentado diante de casa com o baralho de cartas, o hidroavião quietinho, sem que um farrapo de lona se mexesse ao vento, sem que o leme da cauda desse sinal de abano, sem que qualquer luz se acendesse na carlinga. Resumindo: sem nenhuma vontade de voar. Um trambolho, decidiu o homem, uma coisa inútil, uma gaivota morta, e continuou a pensar isto à medida que se dirigia para ele, escoltado pelo cego dos óculos de mica, muito direito, muito seguro do caminho, a tricotar a erva com a bengalinha de metal. Sentou-o num lugar à janela, recomendou-lhe:

— Segura-te.

Ocupou o volante, experimentou os pedais, as alavancas e as manivelas perras, e voltou a cabeça para informar o outro:

— Aguenta um bocadinho que já te mostro Lisboa.

Anos depois, muitos anos depois de o homem e o cego terem levado sumiço, sabe-se lá para onde, o indiano continuava a jurar, a quem o queria ouvir, que o hidroavião não saiu do mesmo sítio, não se deslocou um milímetro, não se ergueu nem isto do pontão. E é neste ponto que as divergências começam: há quem garanta que os empregados da Câmara vieram com uma furgoneta e transportaram para a sucata aquele morcego sem préstimo. Mas há também quem afirme, pronto a jurar, que o hidroavião, com o homem e o cego dentro, correu um nadinha na água, subiu a pino, e partiu, sobre Lisboa, na direcção de Luanda, na direcção do mar. E acrescenta quem sabe que se via um braço, saído de uma janela, a mostar monumentos e igrejas a uns óculos de mica, e uma pretinha de tanga, muito alegre, suspensa de um cordel, a dar-a-dar no pára-brisas em acenos de adeus."