Ao homem sentado diante de casa tanto se lhe dava que se tratasse de Alcochete, Nova Iorque ou Paris: tinha um rectângulo de cortiça nos joelhos, para a paciência das cartas, e ao levantar os olhos do baralho, com a cabeça ainda em Luanda, não era o Tejo que via: era uma ilha de palmeiras, uma concha de arcadas com aves pernaltas nas empenas, e fragatas a gasóleo largando para a pesca, num rastro de motores e batucada.
O homem morou quarenta e sete anos em África, a trabalhar de motorista de camião ao serviço dos holandeses dos diamantes e custava-lhe habituar-se a uma terra de frio onde ninguém o conhecia, tirando os vizinhos de desgraça que dividiam com ele uma língua de lama e alforrecas, furtada aos desenfados do rio.
...
De forma que estava o homem diante de casa, às voltas com ases e manilhas, e sentado ao lado dele, num balde ao contrário, um cego de óculos de mica. Muito direito, atento com os ouvidos que é como os cegos vêem, a enrolar uma mortalha com deditos de croché, e mal os sons rareavam, sinal de que o homem hesitava a pensar, o cego perguntava logo, inquieto:
— Como é Lisboa, Artur?
— Lisboa?
Guardava as cartas de má morte no bolso, e ficava-se, de pálpebra rancorosa, no hidroavião, à medida que pelas redondezas começava uma agitação de ralhos e de caldos em púcaros de folha, que era o jantar de quem viera de Angola, sem dinheiro para uma quarta de chouriço. O homem não comia: demorava-se crepúsculo adentro até o hodroavião desaparecer nas luzinhas de Alcochete ou de Paris, que para os nascidos em África, como era o caso, era igual ao litro, e o cego ao lado dele, também sem caldo, impassível nos óculos de mica, a puxar fósforos e a acender o cigarro na colher da mão. Já estava tudo escuro, só candeeiros a tremelicarem ao longe e um ventinho nas ervas, e o homem, de gola levantada por causa das traições da bronquite, a pensar que ele e o baralho se achavam em Portugal há três semanas no mínimo ... e nisto o cego, curioso, a chupar o cigarro, numa voz que se confundia com os grilos:
— Como é Lisboa, Artur?
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De ideias fixas o cego, pensou o homem cuja cabeça continuava no canto oposto do mar, agarrada ao musseque onde crescera, entretendo-se sozinho no quintal das traseiras, sob um braço de tília. De certo modo, embora estivesse em Cabo Ruivo permanecia em África, com a mãe e as irmãs mais velhas ... e, por estranho que parecesse, o que recordava melhor não eram coisas de adulto, já homem, já motorista dos holandeses dos diamantes, a conduzir um camião para cá e para lá, de Malanje a Luanda e de Luanda a Malanje. ...
Fixava-se no hidroavião a olhar as asas tombadas, os flutuadores, que pareciam pantufas gigantescas de caminhar sobre as marés do Tejo, as cadeiras sem passageiros, a hélice de moinho de poço, o lugar do piloto encostado ao volante, parecido com o dos camiões dos diamantes: só não havia a mascote da pretinha de tanga, pendurada de uma guita, a dar-a-dar no espelho. Isso, pensou o homem, não constituía problema: a questão era uma pessoa instalar-se ao guiador, que em chegando a Luanda encontraria, apesar da guerra que por lá faíscava, a destruir vivendas e jardins, uma capelista pronta a vender uma mascote nova, de modo que alcançaria Malanje com a boneca, toda contente, a dançar merengues no vidro. Quanto a colegas de viagem, que de Lisboa a Malanje é um esticão, convidava o cego que, como ele, não tinha caldo nem família, e de caminho dava uma volta sobre Cabo Ruivo e explicava-lhe a cidade: monumentos, estátuas, igrejas, o carrossel do oito, bairros de ricos, tudo. Largariam de manhã cedo, à hora a que os albatrozes se levantam das mimosas do lodo e o nevoeiro se esfuma em Alcochete, Nova Iorque ou Paris, mostrando paus de fio e telhados tremendo à flor da água, e o indiano do automóvel das Américas, incrédulo:
— Esse hidroavião não vale nada, coitado.
E realmente não parecia valer nada: em três semanas que o homem ali estava, sentado diante de casa com o baralho de cartas, o hidroavião quietinho, sem que um farrapo de lona se mexesse ao vento, sem que o leme da cauda desse sinal de abano, sem que qualquer luz se acendesse na carlinga. Resumindo: sem nenhuma vontade de voar. Um trambolho, decidiu o homem, uma coisa inútil, uma gaivota morta, e continuou a pensar isto à medida que se dirigia para ele, escoltado pelo cego dos óculos de mica, muito direito, muito seguro do caminho, a tricotar a erva com a bengalinha de metal. Sentou-o num lugar à janela, recomendou-lhe:
— Segura-te.
Ocupou o volante, experimentou os pedais, as alavancas e as manivelas perras, e voltou a cabeça para informar o outro:
— Aguenta um bocadinho que já te mostro Lisboa.
Anos depois, muitos anos depois de o homem e o cego terem levado sumiço, sabe-se lá para onde, o indiano continuava a jurar, a quem o queria ouvir, que o hidroavião não saiu do mesmo sítio, não se deslocou um milímetro, não se ergueu nem isto do pontão. E é neste ponto que as divergências começam: há quem garanta que os empregados da Câmara vieram com uma furgoneta e transportaram para a sucata aquele morcego sem préstimo. Mas há também quem afirme, pronto a jurar, que o hidroavião, com o homem e o cego dentro, correu um nadinha na água, subiu a pino, e partiu, sobre Lisboa, na direcção de Luanda, na direcção do mar. E acrescenta quem sabe que se via um braço, saído de uma janela, a mostar monumentos e igrejas a uns óculos de mica, e uma pretinha de tanga, muito alegre, suspensa de um cordel, a dar-a-dar no pára-brisas em acenos de adeus."