quinta-feira, 11 de setembro de 2008

9/11 TV off


Hoje, não vejo televisão.

Já fiz o meu luto pelas vítimas e pelo WTC "n" vezes.
Chega.
Não quero mais.
Repugna-me essa constante memória e o "um-por-um" dos nomes relembrados.

Hoje, vou lembrar outro Setembro.

Na bebedeira colectiva e revolucionária que se seguiu ao 25 de Abril, ninguém parecia ter consciência da gravidade da situação angolana.

O poder tardava em organizar-se e as Forças Armadas voltavam as costas às colónias, razão primeira do acto revolucionário.

Em Angola, as forças de segurança e o controlos fronteiriços terrestre e marítimo "adormeceram".

Tal como ainda hoje, os manipuladores do mundo, trataram de intervir e armaram terrivelmente as forças no terreno. Uns contra o perigo comunista, outros contra o perigo imperialista. Os vizinhos Zaire e África do Sul, seguiram o exemplo.

As Forças Armadas portuguesas em Angola, apenas aguardavam a hora de abandonar o território.

Na tentativa desesperada de abandonar um lugar em guerra, os civis organizaram colunas de fuga por terra, para locais próximos mais seguros, mesmo dentro de Angola, como por exemplo para Lubango (Sá da Bandeira), Namibe (Moçâmedes) ou Luanda, mas também para o exterior, sobretudo para a África do Sul.

Essas colunas foram prontamente proibidas pelas autoridades, atitude assassina para muita gente. Pergunto eu, como se pode permitir tal a uma autoridade inoperante...

Finalmente, quando a calamidade humanitária era escandalosa, sem outra saída e num último esforço de salvar a face, foram permitidas e apoiadas as colunas.



Conheci nestas férias Carlos Monteiro, angolano, que há 31 anos era furriel do Exército português.

Contou-me a história que vos apresento, uma entre milhares, mas que retrata a situação vivida em Angola no limiar da Independência.

5.000 carros e 20.000 pessoas, números por baixo, uma coluna com mais de 100 km , 8 a 12 dias de viagem escoltada.

São estes os números da que parece ter sido a única coluna organizada e escoltada, saída de Nova Lisboa, Huambo. Constituída principalmente por habitantes locais, mas também por muitos oriundos de povoações menos seguras, que lá se haviam concentrado.

A data, 22 de Agosto de 1975.

O destino, Catuíto. No Sudoeste Africano, actual Namíbia.

À espera, uma força militar Sul-Africana, que levaria a coluna para um campo de refugiados próximo, e posteriormente para a África do Sul.

Sabia-se da preparação de uma ofensiva sem precedentes na cidade, entre o MPLA e a UNITA, esta a dominar o Huambo.
A escolta foi preparada entre o exército português e a FNLA que abriu a coluna, chefiada por Daniel Chipenda, dissidente do MPLA...

Organizou-se a logística e preparou-se tudo para as negociações que se adivinhavam, nos controlos e barramentos de estrada protagonizados pelos 3 movimentos, alguns de 20 em 20 km.
Durante a viagem, elementos do exército percorriam toda a coluna da frente para trás, para assegurar a assistência e a segurança aos viajantes.

A passagem por Menongue (Serpa Pinto) era fundamental para reabastecimento e reagrupamento.
Haviam confrontos militares na pequena cidade, e foi necessário "tomar" o local e negociar a saída das forças beligerantes. Em 24 horas, tornaram-se operacionais os serviços básicos, entre os quais uma padaria e uma farmácia que tinha sido assaltada, com os medicamentos espalhados por todo o lado, o que tornou necessária uma demorada arrumação.

8 dias após o início da viagem, chegaram ao Catuíto os primeiros veículos da coluna.

A travessia mais problemática, foram algumas dezenas de quilómetros de deserto, já perto da fronteira Sul de Angola. Foi necessário rebocar um por um, todos os veículos sem tracção total, com a intervenção dos todo-o-terreno militares e civis disponíveis.

Os últimos elementos da coluna, chegaram 12 dias após o início da viagem.

Entretanto, foram passando em sentido inverso, centenas de camiões Sul-Africanos carregados de armamento...

Terminada a operação, os militares portugueses entregaram todos os seus veículos e todas as suas armas ao exército Sul-Africano no local.

Alguns desses militares, voltaram como civis para o Huambo, em veículos que propositadamente acompanharam a coluna para assegurar o regresso.

Cerca de 20 dias depois de ter saído do Huambo, Carlos Monteiro viu aquilo que nunca imaginou quando voltasse.

A cidade estava morta e completamente destruída.
Nas ruas, o cheiro era insuportável.
Corpos de gente morta por todo o lado. Milhares. De 2 em 2 metros, um corpo. Civis quase todos. Muitas crianças também.

Carlos Monteiro reuniu os poucos haveres que conseguiu, e foi à aventura com alguns companheiros repetir a viagem para Catuíto. Desta vez, não teve ajuda de ninguém.

Huambo, tem agora, apesar de tudo, 1 milhão de habitantes.

As marcas dessa guerra mantêm-se ainda hoje, por toda a parte.


Já fiz o meu luto de 1974 a 1976, pelos mártires do colonialismo, e por todos aqueles que foram dominados à força.

Entretanto, permitia-se a matança indiscriminada em nome da independência e da liberdade...


imagem daqui

Há dias, estive com alguns angolanos que vieram pela 1ª vez a Portugal.
Eles, já fizeram o seu luto, também.
Sofreram como ninguém imagina.
Estiveram presos muitos anos por possuírem 200/300 US dolares, ou outra espécie de bens. Todos os pertences das suas famílias foram "confiscados" em nome não se sabe de quê. Alguns foram torturados, outros mortos.
Também eles, já fizeram o seu luto.
E não querem saber mais do passado.
E gostam MUITO dos portugueses. Fizeram as pazes.

Hoje, vou lembrar outro Setembro.
O de 1975.
Ignorado, completamente.
Muitos milhares de inocentes. 15 mil? Ninguém sabe. Nem os nomes.
Eram portugueses e angolanos.
Foi no Huambo.
Eu, só eu, vou fazer esse luto.

Porque não sabia, e ainda não o fiz.
originalmente postado algures em 2006/09/10