sexta-feira, 10 de outubro de 2008

RAIVA

Não gosto de deitar fora jornais e revistas, sem pelo menos "passar os olhos" por eles.
Por isso os deposito perto do "trono" no qual cago para tudo, para todos os efeitos.
Mais facilmente deito fora um livro qualquer, que comprei à força e sem interesse, enquanto "sócio" do Círculo de Leitores...

E ainda bem que não deitei fora aqueles jornais e revistas, porque teria perdido esta pérola:

«Não gosto de dizer mal de Portugal — será snobismo, mas a secular banalidade desse passatempo irrita-me a cútis. Ainda gosto menos de ouvir dizer mal de Portugal, e nisso sou tão vulgar como uma varina. Foi por isso com intensa vergonha que há três anos, por esta altura, assisti, com um grupo de ingleses, a uma reportagem da BBC onde se demonstrava que Portugal é um país tão pobre que, quando chove, as pontes caem e as pessoas morrem.
Agora, a decisão tomada pelo juiz de instrução Nuno Melo de arquivar o processo de apuramento de responsabilidades na queda da ponte de Entre-os-Rios vem provar que, ao contrário do que tentei explicar aos meus amigos ingleses — que Portugal não correspondia àquela imagem trágica, que aquele acidente era a excepção, funesta mas irrepetível —, tudo isto existe, e tudo isto é mais triste do que o mais velho fado.
«Causas naturais», reza a decisão, como se fosse natural a queda de uma ponte na qual quinze anos antes — quinze anos, senhores! — se detectara uma perigosa erosão. Em vão o povo da terra clamou por uma ponte nova ...
... Afinal, como depois da tragédia se viu na televisão, não era só uma ponte — eram dez, quinze, vinte, inúmeras pontes velhinhas que, por todo o país, estremeciam, até à hora utópica em que valores mais altos não se levantassem.
Se a culpa é afinal da chuva, pergunto qual é a solução: irmos todos a Fátima rezar para que não chova?

Recordemos: o autocarro levava uma colecção de famílias humildes, com muitas crianças e bebés, que haviam partido em busca das amendoeiras em flor do início da Primavera.
Raiva, é o nome de uma das povoações mais desfalcadas pelo inesperado mergulho do autocarro e de três automóveis, causando 59 mortos.
Raiva.
Se fosse ficção, acusar-nos-iam de pecar por redundância.
Mas Portugal é um país redundante — sempre foi essa a sua maior glória, é essa também a causa da sua imobilidade profunda.
Remoemos paixões e iras, lamuriamo-nos e deixamo-nos embalar pela música das nossas próprias lamúrias.
...
Enquanto o povo de Raiva aguardava, em silêncio, nas margens do rio negro, subitamente repletas de ministros e candidatos a ministro, que os corpos mortos dos que mais amavam saíssem da mortalha da água para o cemitério da terra (última esperança, e também essa em muitos casos frustrada), as chuvas arrasaram mais duas pontes — uma perto de Famalicâo, outra de Santo Tirso - embora, por sorte, mais ninguém tivesse morrido.
Os jornais contavam que havia 19 técnicos para inspeccionar as 3.500 pontes do país e sobretudo que, desde a extinção da Junta Autónoma de Estradas, a responsabilidade das pontes andava diluída numa maré de institutos sem competências definidas. Enquanto papéis e queixas boiavam sobre as mesas das repartições, a ponte cedeu, as pessoas morreram.
Amália cantava: «Povo que lavas no rio/ e talhas com teu machado/ as tábuas do teu caixão».
Amália também já morreu, mas o seu fado continua a assombrar-nos.
Trinta anos depois da descoberta da liberdade, vivemos ainda na cinza de um Portugal adiado pelo hábito da ditadura, mãe de toda a desresponsabilizaçâo. »

"Os mortos abandonados" em CRÓNICA FEMININA por INÊS PEDROSA, revista ÚNICA do EXPRESSO, escrito na 3ª fª anterior a 3 de Abril de 2004.