Por isso os deposito perto do "trono" no qual cago para tudo, para todos os efeitos.
Mais facilmente deito fora um livro qualquer, que comprei à força e sem interesse, enquanto "sócio" do Círculo de Leitores...
E ainda bem que não deitei fora aqueles jornais e revistas, porque teria perdido esta pérola:
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Agora, a decisão tomada pelo juiz de instrução Nuno Melo de arquivar o processo de apuramento de responsabilidades na queda da ponte de Entre-os-Rios vem provar que, ao contrário do que tentei explicar aos meus amigos ingleses — que Portugal não correspondia àquela imagem trágica, que aquele acidente era a excepção, funesta mas irrepetível —, tudo isto existe, e tudo isto é mais triste do que o mais velho fado.
«Causas naturais», reza a decisão, como se fosse natural a queda de uma ponte na qual quinze anos antes — quinze anos, senhores! — se detectara uma perigosa erosão. Em vão o povo da terra clamou por uma ponte nova ...
... Afinal, como depois da tragédia se viu na televisão, não era só uma ponte — eram dez, quinze, vinte, inúmeras pontes velhinhas que, por todo o país, estremeciam, até à hora utópica em que valores mais altos não se levantassem.
Se a culpa é afinal da chuva, pergunto qual é a solução: irmos todos a Fátima rezar para que não chova?
Recordemos: o autocarro levava uma colecção de famílias humildes, com muitas crianças e bebés, que haviam partido em busca das amendoeiras em flor do início da Primavera.
Raiva, é o nome de uma das povoações mais desfalcadas pelo inesperado mergulho do autocarro e de três automóveis, causando 59 mortos.
Raiva.
Se fosse ficção, acusar-nos-iam de pecar por redundância.
Mas Portugal é um país redundante — sempre foi essa a sua maior glória, é essa também a causa da sua imobilidade profunda.
Remoemos paixões e iras, lamuriamo-nos e deixamo-nos embalar pela música das nossas próprias lamúrias.
...
Enquanto o povo de Raiva aguardava, em silêncio, nas margens do rio negro, subitamente repletas de ministros e candidatos a ministro, que os corpos mortos dos que mais amavam saíssem da mortalha da água para o cemitério da terra (última esperança, e também essa em muitos casos frustrada), as chuvas arrasaram mais duas pontes — uma perto de Famalicâo, outra de Santo Tirso - embora, por sorte, mais ninguém tivesse morrido.
Os jornais contavam que havia 19 técnicos para inspeccionar as 3.500 pontes do país e sobretudo que, desde a extinção da Junta Autónoma de Estradas, a responsabilidade das pontes andava diluída numa maré de institutos sem competências definidas. Enquanto papéis e queixas boiavam sobre as mesas das repartições, a ponte cedeu, as pessoas morreram.
Amália cantava: «Povo que lavas no rio/ e talhas com teu machado/ as tábuas do teu caixão».
Amália também já morreu, mas o seu fado continua a assombrar-nos.
Trinta anos depois da descoberta da liberdade, vivemos ainda na cinza de um Portugal adiado pelo hábito da ditadura, mãe de toda a desresponsabilizaçâo. »
"Os mortos abandonados" em CRÓNICA FEMININA por INÊS PEDROSA, revista ÚNICA do EXPRESSO, escrito na 3ª fª anterior a 3 de Abril de 2004.