domingo, 1 de fevereiro de 2009

uma tragédia pendurada


Esta é uma história que nunca ficará completa e nunca será bem contada.

A propósito
deste post, e do lado trágico do processo da descolonização e da autonomia de Angola, mostro algumas boas notas na reflexão de Manuel Lucena, aquando do 20º aniversário do 25 de Abril, numa entrevista de Maria João Avillez para o "Público" de 20.02.1994, que pode ser lida na íntegra aqui:

"... hoje pode dizer-se da direita e da esquerda o mesmo que se dizia só dos reaccionários da Revolução Francesa: não esqueceram nada, não aprenderam e não perdoaram nada... A direita continua com a pedra no sapato da descolonizaçâo como se esta fosse exclusivamente culpa da esquerda. Esta — e a meu ver de uma forma um pouco estranha — considera que o regime deposto é o culpado de tudo. A mim, que quando o regime caiu estava do lado da esquerda, esta última posição impressiona-me mais.
Porque nós nos achávamos o sal da Terra, éramos aqueles que trariam se não o paraíso na Terra, pelo menos uma vida substancialmente melhor... Sempre considerei que "noblesse oblige", portanto pareceu-me inaceitável que, às primeiras dificuldades, nos começássemos a esconder atrás dos inimigos e desculpar de tudo com a "pesada herança do fascismo". A descolonizaçâo foi uma tragédia em que há responsabilidades partilhadas, da esquerda e da direita. E não esqueçamos que também há o outro lado (africano) nacionalista. Não se diga que foi a parte portuguesa a responsável exclusiva, como se não houvesse guinéus, angolanos e moçambicanos! Por isso lhe disse que, ao fim destes 20 anos, talvez fosse uma prova de maturidade reconhecermos que ninguém tinha nem tem — a verdade e a inocência no bolso.

... Comecei por acreditar, quando muito novo, na obra colonizadora dos portugueses, no Estado multirracial e pluricontinental. Eram os exemplos que tinha à frente, o meu pai era militar, esteve em Angola muito tempo, eu próprio vivi lá muitos anos. O meu pai e bastantes amigos dele eram pessoas que acreditavam no que estavam a fazer. Costumo dizer que tinham sido mandados para África pelo Eça de Queiroz, um pouco como o Gonçalo da "Ilustre Casa de Ramires". É um livro com que a esquerda, de resto, faz más contas, a esquerda prefere o "Primo Basílio" ou "os Maias" [ri]. Estou-me a lembrar também de uns textos do Aires de Orneias — lugar-tenente de Sua Majestade —, em que ele diz que a geração de 90 trocou o decandentismo "fin de siècle" e o absinto pela África, enquanto oportunidade de vida activa e enérgica. O meu pai e as pessoas como ele tinham um ideal africanista, procuravam servir as populações e bastantes vezes conseguiam-no. Por isso considero que se não pode fazer aqueles discursos grosseiros sobre o capitalismo puro e simples, porque essa gente, no mínimo, prestou serviços invulgares, que o capitalismo nunca agradeceu.
... E aí vem outra vez o Eça: aquele paquete, o Índia, que era o nosso melhor navio, mas metia apenas sete polegadas de água por hora! No conceito desse grupo de pessoas, Angola era nossa, embora metesse sete polegadas de água por hora. Ainda me lembro do famoso relatório do Henrique Galvão sobre o mísero estado de Angola em matéria de saúde, educação, etc., e do meu pai a dizer que o Galvâo ainda fora moderado, que por lá estava tudo ainda pior!
Mas quando anos mais tarde, já depois do início da guerra, e com o Galvâo na oposição, eu falei de novo com o meu pai a propósito do tal relatório, ele repetiu-me que ele fora moderado, mas que "só os portugueses é que podriam melhorar essas coisas". E acrescentou: "Porque, se as colónias se tornarem independentes, vêm para cá estrangeiros, será muito pior, acabará numa tragédia!"

... relativamente ao que pensara na adolescência, mudei: discordei do prosseguimento da guerra em três frentes que via como um mero adiamento; e pensei que, quanto mais tarde começassem as negociações, pior — o que ainda penso. Mas o modo como as coisas se passaram e, sobretudo, o estado de Angola e de Moçambique 20 anos depois da descolonização impedem que se dê a questão por encerrada.

Ao longo do tempo, o que percebi, ao contrário do que nos ocorria na altura — refiro-me à rapaziada da oposição —, foi que em Angola, Moçambique ou Guiné não havia nações formadas e que esse era o ponto fundamental. Havia, quando muito, nações em formação, o que fazia com que fosse um erro a ideia de que os movimentos de libertação representavam nações. Em resumo: teorizei, por um lado, a inevitabilidade da descolonização — no que estava certo — e, por outro, alinhei na promoção de uma certa rebeldia que até certo ponto se justificava, mas que teve como consequência o facto de, após o 25 de Abril, uma grande parte da juventude começar a gritar "Nem mais um soldado para África!"...

... um tio meu, monárquico, um dia em que alguém comparava Salazar aos reis de Portugal, dizia que "Salazar não fazia a minima ideia das colónias, porque nenhum rei considerara as colónias todas iguais". Havia territórios para dar no dote das princesas, havia entrepostos comerciais e meros postos militares avançados. E, depois, as grandes colónias de povoamento, com outro peso humano e político.

... numa altura em que nalgumas colónias, sobretudo em Angola, se dava pela primeira vez depois do início da guerra — e em parte por virtude dela, portanto também devido aos movimentos de libertação — um enorme surto de desenvolvimento. Talvez pela primeira vez, a propaganda do colonialismo português começava a ser algo verdadeira. Daí a minha ideia de que Portugal devia reconhecer uma certa proeminência a alguns movimentos que, irreversivelmente, tinham desencadeado o processo. No entanto, esses movimentos, justamente porque ainda não existiam nações, não estavam implantados na totalidade dos territórios nem representavam a generalidade das populações. Assim, a independência deveria ter sido deferida e o apoio do Estado português — de que esses movimentos bem precisavam para se implantar sem demasiada violência... — teria como preço obrigá-los a condutas menos absolutistas. Teriam de aceitar a existência de outras forças políticas, mesmo que fossem mais iguais do que elas.

... (da boa-fé e da boa vontade nos acordos de Alvor) dessas coisas está o inferno cheio, não é?! Lembro-me de que em Cabo Verde, onde continuei o meu serviço militar após o 25 de Abril, no dia em que soubemos desses acordos houve uma conversa entre sargentos e oficiais-milicianos. Os sargentos, que vinham de Angola, comentaram sem hesitação: "A partir de agora, eles vão-se matar uns aos outros e durante muitos anos..." Era preciso estar-se envolvido de uma determinada maneira no processo político aqui em Portugal para acreditar naquilo em que um sargento conhecedor do terreno nunca acreditou...

... tinham prometido mundos e fundos; uma descolonização exemplar e, sobretudo, a sua articulação com o processo de construção do socialismo... Foi um bocado escandaloso virar-se as costas daquela maneira, enquanto nós aqui pretendíamos instaurar um socialismo mirífico.

... a maioria dos portugueses ... não estava assim tão envolvida em África como o deposto regime gostava de acreditar. As pessoas que tinham lá familiares na tropa queriam é que eles voltassem. E muitos que se preocupavam a sério com a questão começavam a ficar cansados com a política colonial do regime

... Os meus amigos (políticos) deram, todos, contribuições magníficas, ao longo destes anos, para a construção da democracia. Mas o facto de eu ser, entre todos eles, o único que tinha raízes em África fez-me ficar um bocado pendurado, deixei em certa medida de saber o que fazer.
..."